Rodrigo Naves

Mundos contínuos, incompletos

...e que essas linhas e superfícies parecem antes feitas de coisas – tiras de borrachas, fitas de papel, borra, limalha de ferro – do que tinta, pincel, bastão à óleo, guache. Por que não uni-las, ou puxar uma das outras, como se a desdobrássemos?
Porque é um pouco assim o mundo que se desprende desses trabalhos: um mundo contínuo, de coisas que se ligam umas às outras, embora também relutante, indolente. (...)

(...) Ou então sedimentam, como nos traços de Fernanda Junqueira, que por sua vez são também rastros, pois o que se depositou no fundo precisa se mostrar como resíduo e por isso ela o arrasta, para que no plano ocorra o mesmo que aconteceu de cima para baixo, só que em sentido contrário, e o que lentamente decantou, passando de partícula a mancha, agora volta a esfarelar-se. E que nesse movimento se criem formas bojudas, vasos, ânforas, é coisa que não se estranha: elas pedem uma completude que torna as linhas ainda mais falhas e ásperas, mostrando-se traços sempre que tendem ao espaço.

Diferentemente do trabalho de Elizabeth Jobim, o de Fernanda é quebradiço, fragmentário. Reduziu o mundo à partículas e na hora de reagrupa-las, já não havia um lugar. (...)

(...) Os trabalhos desses quatro artistas não pretendem se reunir em torno de um programa, criar vertentes ou defender posições. No entanto, têm alguns elementos comuns. São desenhos, mas abdicam voluntariamente de ser desígnio – que etimologicamente, mas não só, garantia ao desenho sua função de projeto, de ordenação do futuro. Eles aderem ao mundo, incorporam-no à própria forma, e às vezes chegam mesmo a ser mundo. Arte e vida? Sim, se esses desenhos não introduzissem ao mundo uma fenda que aquele discurso que reivindica o fim da autonomia da arte teima em negar. Por plasticidade, fragmentação, descontrole ou desorientação, eles se sabem inaptos para reordenar a realidade. Aprenderam com o alto modernismo, não existiriam sem ele, e por isso mesmo não são ele. Basta-lhes, por ora, manter a incompletude do mundo, por meio de um vínculo imperfeito com ele. Mundos perfeitos – em que a arte e vida convivem harmoniosamente – pedem muito pouco à arte, senão não seriam mundos perfeitos.

Trechos do texto crítico de Rodrigo Naves para o folder da  exposição DESENHO CONTEMPORÂNEO- quatro artistas brasileiros : Elizabeth Jobim, Fernanda Junqueira, Gabriela Machado e Neno del Castillo. 1999/2000