Daquilo que as coisas são feitas

Quatro matérias é uma exposição que trata não somente dos materiais, mas também dos modos de operação daquilo que conhecemos como objeto escultórico. Pedra, madeira, argamassa, areia e cimento são os elementos aqui utilizados pelos artistas Ana Muglia, Angela Freiberger, Fernanda Junqueira e Ricardo Ventura. O sentido de colocar as obras dispersas pelo jardim é reintegrá-las à natureza, fazendo-as retornar ao seu habitat original, como se voltassem ao seus estágios de “coisas naturais”. As esculturas são, assim, construções culturais, formas eruditas de moldar com base na pureza das formas encontradas na natureza, ou como aquilo que Platão concebe como forma perfeita, Ideia – a forma ideal, perfeita, mimética é que mobiliza o artista a busca-la no cerne da natureza. (...)

(...) Fernanda Junqueira cria objetos cujas aparências nos remetem a uma função utilitária por lembrarem receptáculos, ânforas, vasos coletores de água da antiguidade ( Pompéia e Herculano estão cheia deles), mas que na verdade são esculturas que evidenciam a questão do vazio e do cheio. Como diz o poeta, “é sempre bom lembrar que um copo vazio está cheio de ar”. No entanto, as formas ancestrais utilizadas pela artista são para subverter nosso conceito foucaultiano das palavras e das coisas, das funções e das formas, enfim, do modo como o nosso aparelho de inteligência opera com o significante e o significado do mundo visível. A matéria, aqui, o barro, nos remete à primeira providencia do homem em relação à sua perpetuação diante da natureza: cuidar da moradia e da alimentação, inventando o que conhecemos como cultura. Ao usar o barro cozido, a artista faz com que tudo pareça mais antigo do que realmente é. Tal procedimento arcaico nos remete à pré-história, às experiências imemoriais das civilizações que se ergueram na terra e para sempre a dominaram. Com isso, somos levados de volta ao passado, à origem do homem, que deu nome às coisas. Se Deus fez o mundo, deixou para o homem a tarefa de nomeá-lo, dar-lhe significado e uso, como a própria noção de cheio e vazio, dentro e fora, forma e não forma... (...)

Para além da visibilidade das formas e da funcionalidade das coisas, somos essencialmente uma construção linguística, como apontava Wittgenstein, com toda razão. A mostra Quatro matérias tem o caráter de evidenciar o peso da ancestralidade das formas naturais reconstruídas pela civilização através da utilização de materiais aparentemente banais em nossa sociedade, mas que nos fazem enxergar o seu valor quando emprestados à arte contemporânea.

Trechos do texto crítico para o convite da exposição itinerante: "Quatro matérias", dos artistas Ana Muglia, Angela Freiberger, Fernanda Junqueira e Ricardo Ventura. SESC Rio de janeiro, 2003.

Paulo Reis