Forma do Vazio

A livre apropriação poética de uma noção matemática, e uma das mais paradoxais - o conceito de conjunto vazio -, teria mesmo de acabar tomando uma forma material básica e primitiva: a cerâmica (ou o cimento) nas esculturas e, quando se trata das telas, uma pintura feita diretamente com as mãos, sempre em tons de ocre ou cinza. No imaginário do trabalho, há inclusive um termo médio, um objeto comum que faz a perfeita mediação entre a idéia matemática que o inspira e certa forma arquetípica que não cessa de fasciná-lo: o vaso.

A partir de uma série de desenhos abstratos (1993), que podia sugerir, entretanto, um jogo perceptivo com o perfil do vaso, levando o olho a construir, desconstruir e reconstruir a sua irreprimível figura, surge o impulso de reunir vazios, materializá-los num conjunto. E o desafio não será menos do que transformá-los em esculturas. Como demonstra a sua pronta adesão à cerâmica, no entanto, elas haveriam de ser tanto objetos tridimensionais autônomos, a ganhar escala e peso, quanto corpos sensíveis, trazendo a memória fresca de seu modo de produção artesanal, incerto, nas antípodas de qualquer raciocínio matemático especulativo. Com seu espaço topológico, auto-envolvente, essas presenças escultóricas favorecem um encontro estético pessoal, face a face, ou talvez melhor, corpo a corpo. Graças a sua proximidade um pouco excessiva, a seu volume circular expansivo, elas chamam a atenção para o vazio que abrigam. Ficamos a indagar sobre o vazio que escondem quando, na verdade, a sua forma topológica já nos envolve nele. Porque, ao contrário do vazio meramente figurativo, que em geral se representa pela distância física, o vazio aqui é substantivo. E, já nos ensina sua etimologia, confunde-se com o próprio vaso, a demonstrar assim, exemplarmente, o enigma da Forma - algo que se distingue, não se sabe bem como, daquilo que figura.

Ao adotar o vaso como tema, liberando talvez uma pressão ancestral inconsciente, as esculturas de Fernanda Junqueira dispõem-se a tratar do mais difícil: a forma do vazio. Seguindo um raciocínio combinatório, serial, sem excluir, contudo, o senso de improviso, essas peças articulam e desarticulam, alteram e associam os valores escultóricos tradicionais - massa e volume - literalmente em torno do vazio. Sob vários aspectos, contrariam assim a coerência milenar da morfologia greco-romana, sua lógica dualista de continente-conteúdo, seu princípio de continuidade orgânica. Com seus cortes regulares e suas torções abruptas, essas esculturas forçam os limites de resistência da cerâmica, desafiam o seu processo de produção dócil e gradual. Elas se recortam e  se  subdividem em elementos discretos, descontínuos, já não são mais partes ou fragmentos de uma forma íntegra. Não resta dúvida: cada uma é uma; no entanto, alguma coisa da noção de conjunto participa, de maneira intrínseca, da individualidade dessas esculturas. Visivelmente, uma sai da outra, fazem parte de uma progressão virtual infinita.

E, no contexto da exposição, a presença das pinturas, longe de interromper, só faz ampliar esse processo formal em aberto. Isto porque, se as esculturas tiveram origem nos desenhos, as pinturas recentes obviamente respondem às esculturas. Não obstante sua planaridade - e até certo aspecto de inscrições rupestres -, elas parecem repercutir espacialmente a forma circular das esculturas. Tanto quanto estas, as pinturas se resumem ao essencial. A começar por sua geometria elementar, restrita às duas figuras básicas: o quadrado e o círculo. E o meio empregado para ativar o círculo dentro do formato quadrado das telas não poderia ser mais instintivo: com as mãos, de um golpe só, a artista traça o mesmo rudimento de círculo negro sobre um fundo nada uniforme ocre ou cinza. De tela em tela, esses gestos variam não apenas pelo arco diferente do círculo como por sua própria intensidade imprevisível. O estranho é que esses gestos arranhados, incisivos, a cravar na superfície da tela uma figura aproximada de círculo, conseguem soltá-la no espaço, em diálogo fluido com as esculturas. No limite, essas telas parecem querer atuar na sala como o fazem em seu próprio perímetro - ou seja, levá-la também a rodar. Assim, esculturas e telas vêm de fato a compor um peculiar conjunto no qual cada obra, isto é, cada coisa cheia, remete ao vazio, enquanto o espaço vazio torna-se cheio de matéria estética, ao mesmo tempo, densa e difusa.

Texto da exposição individual Conjunto Vazio, Paço Imperial, Rio de Janeiro e Galeria Valu Ória, São Paulo, 2002/2003.

In: Lima,Sueli de(org.). Ronaldo Brito, experiência crítica. São Paulo: Cosac & Naif

Form of Emptiness

It makes sense that the free poetic appropriation of a mathematical concept, one of the most paradoxical of them all — the concept of empty set — should have assumed a basic and primitive material form: clay (or cement) in sculpture, or, in the canvases, a kind of painting made directly with the hands, always in shades of ocher or gray. In the conception of the work there is even a middle term, a common object that acts as the perfect mediator between the mathematical idea that inspires it and a certain archetypal form that ceaselessly fascinates it: the vase.

On the basis of a 1993 series of drawings that, although abstract, may suggest a perceptual game with the profile of the vase, leading the eye to construct, deconstruct and reconstruct its irrepressible figure, there arises the impulse to connect voids, to materialize them in a set. And the challenge is nothing less than to transform them into sculptures. But, as the immediate adoption of clay makes clear, they would have to be simultaneously autonomous three-dimensional objects, endowed with scale and weight, and sensible bodies, still bearing the fresh memory of their handcrafted, uncertain origin, the very opposite of any speculative mathematical reasoning. With their self-enveloping topological space, these sculptural presences favor a personal, face-to-face aesthetic confrontation, a veritable face-off. Thanks to their slightly excessive proximity, their expansive circular volume, they draw attention to the void they contain. We are led to wonder about the emptiness they hide, whereas in fact their topological form already involves us in it. For, in contrast with a merely figurative void, generally represented as physical distance, the void here is of a substantive nature. And, it is identified with the vase itself, in this way providing an exemplary demonstration of the enigma of Form: something that distinguishes itself —one does not know just how — from what it represents.

By adopting the vase as their theme, perhaps yielding to an unconscious ancestral pressure, Fernanda Junqueira’s sculptures set out to deal with what is most difficult: the form of emptiness. Adopting a combinatory, serial logic, though without excluding a sense of improvisation, these pieces articulate and disarticulate, alter and associate traditional sculptural values — mass and volume — literally around emptiness. Thus in a number of ways they counter the age-old consistency of Greco-Roman morphology, its dualistic logic of container/content, its principle of organic continuity. With their regular cuts and abrupt twists, these sculptures strain the limits of resistance of clay, challenging its facile, gradual process of production. They are cut up and subdivided into discrete, discontinuous elements that are no longer parts or fragments of a whole. No doubt about it: each one is one. However, something of the notion of set intrinsically informs the individuality of these sculptures. Quite visibly, each derives from the other, and together they make up an endless virtual progression.

And in the context of the exhibition the presence of the paintings does not disrupt this open-ended formal process: in fact, they amplify it. This is so because if the sculptures had their origin in drawings, the recent paintings obviously respond to the sculptures. For all their flatness, and even their affinity with cave inscriptions, they seem to echo in space the circular shape of the sculptures. Like the sculptures, the paintings are pared down to the essential. Their very geometry is elementary, restricted to the two basic figures: the square and the circle. And the way in which the circle is activated within the square format of the canvases could not have been more instinctual: with her hands, at a single stroke, the artist draws the same rudimentary black circle against a not-at-all uniform ocher and gray background. These gestures vary from one canvas to the other, not only because the arc of the circle is different but also because their intensity is unpredictable. Strangely enough, these scratchy, incisive gestures that inscribe a near-circle on the surface of the canvas have the effect of setting the paintings free in space, in a fluent dialogue with the sculptures. Ultimately these paintings seem to strive to do in the space of the room what they do within their own perimeter — that is, to make it spin. In this way, sculptures and paintings make up a curious set in which each work — that is, each full thing — points to emptiness, while empty space is filled with aesthetic matter, at once dense and diffuse.

Text for "Empty Set" Solo Exibition's catalogue, Paço Imperial, Rio de Janeiro, RJ and Valu Oria Gallery's catalogue, São Paulo, SP, 2002/2003.

English translation: Paulo Henriques Britto

Ronaldo Brito