Fernando Gerheim

Anotações para Jardins Submersos

Anotações I

O trabalho visa a um núcleo: receptividade

Quando entramos, e o vemos, ele é horizontal, se nega à frontalidade do olhar. A questão da profundidade da pintura é desfeita na gradação azul da água que leva ao fundo do salão como espaço real. E, no fundo, um mergulho final na cor. Só cor, sem matéria – para mergulhar.

Forma-evento – que evapora.

Sem a resistência dos sólidos
Volume de cor para mergu(o)lhar

Do olhar que resvala ao que mergulha e submerge emotivo no volume de cor. 

Essas gradações estão entre o seu oposto: imagens objetivas; mas estas – chuva (com som), peixes, água e plantas – criam uma realidade aumentada; um jogo com a água real onde elas são projetadas – imagem que em parte coincide, em parte difere e acrescenta ao real. Até o lugar da projeção das imagens, eminentemente ilusórias em sua leveza de telaquática, é específico. A imagem da projeção de vídeo faz com que essa instalação no espaço específico comente – receba –, numa videoinstalação dentro da instalação de características opostas – em que os materiais são explorados enquanto tais, na sua, digamos literalidade –, esse espaço errático, que resvala, tão contemporâneo, em que atual e virtual desfazem a unidade de espaço e tempo, aqui reunidos convivem.

Receptividade
Fluidez 

Fluidez que toma a forma do caminho que encontra, caminho, é claro, no chão. Chão cheio de marcas no marco da arquitetura modernista brasileira, o Palácio Gustavo Capanema. 

O espaço se revela porque o trabalho é o seu receptáculo.

Para ver, é preciso se deslocar.
Mas ele desvia
Não uma pintura que represente ou se torne ela própria espaço; o espaço é que se torna pictórico.
O chão acende a luz azula.
O presente no espaço físico é também uma memória, emotiva, do modernismo brasileiro em um diálogo intenso e extenso, não linear, com a história da arte.
Lugar específico e – com seus deslocamentos – errático. Projeções, reflexos.
Aquarela expandida em que a gradação de cor dissolve o grid do espaço.

 

 Anotações II 

 Jardins Submersos intervém no espaço físico e também discursivo. No deslocamento dos jardins suspensos de Burle Marx, no terraço acima, para as sinuosas “piscinas” de plástico, a matéria, ironicamente líquida, ultrapassa a literalidade minimalista num diálogo com camadas simbólicas do espaço. Se o espaço entorno é refletido na água como imagem, o trabalho incorpora ainda imagens de vídeo. O lugar específico é ao mesmo tempo de deslocamentos e desvios. 

As experimentações com pigmento azul e água geraram a série de “Aquarelas Submersas”, o que faz ver “Jardins Submersos” como uma aquarela expandida. 

O líquido, que assume e desfaz qualquer forma, e o azul, que é a cor do mais etéreo, são elementos que negam a forma fixa. Escorrem, evaporam. Forma-evento que muda com a luz e a paisagem. E que aqui duplica as curvas orgânicas do jardim de Burle Marx entre o grid de janelas da arquitetura modernista. 

Do olhar rápido, que resvala, ao emotivo, que submerge 
Só cor
Volume sem resistência sólida

A água é invisível e informe. Transparência seminal. Enche o espaço de vazio. Contida no paradoxal grid sinuoso, também espelha, como os jardins submersos espelham o suspenso. A fluidez para com o espaço circundante, dando receptivamente passagem a ele, nos convida a também participar. 

Três vídeos são projetados do teto sobre a água, em contra-plongée: as marcas centrípetas das gotas de chuva (com som) caindo na água; peixes matisseando n’água; plantas aquáticas – todas as imagens criam uma realidade aumentada, num jogo entre água imagética e real. Como o lugar da projeção das imagens ilusórias é específico, o trabalho incorpora o virtual em sua poética.

A imagem anda pelo corpo movente. O lugar específico e o errático se misturam. O reflexo natural e a imagem de vídeo intensificam o jogo de gradações, nuances, intervalos. 

A água é como a cidade que passa por dentro do prédio, sob o vão dos pilotis. A água toma a forma do caminho que encontra. Caminho, é claro, é no chão. A horizontalidade nos nega a obra que não podemos abarcar frontalmente. Plana e horizontal, a água se estende e desvia nossos olhos para esse chão. Ela entrega a perspectiva do salão, capta e duplica sua luminosidade. Olhá-la é avançar o olhar na direção da profundidade. Não a profundidade ilusória da pintura, mas a real, do salão. Ao mesmo tempo, como numa única onda, o azul vai se tornando mais fechado ao longo dos quadrados. A água passa da transparência ao opaco. Penetramos no processo de uma aquarela espacial, que se expande e azula a luz. 

Luz, opacidade, transparência, volume, plano: são questões da pintura – em diálogo com a arquitetura, a instalação imersiva, o vídeo – que o trabalho nos fala. Nesse lugar heteróclito, o espaço se revela porque o trabalho é o seu receptáculo. Só podemos vê-lo, então, se nos deslocamos por ele. Em movimento, num cinema de passos lentos, não podemos vê-lo sem ao mesmo tempo deixar de vê-lo, pois ele se desvia. A água pictoricamente planar, com sua fina espessura volumétrica, nos mostra uma profundidade real. O espaço é que se torna, em seu avesso, croma e lúmen. 

Final da tarde, o sol incide em diagonal, o chão acende a luz azula. 

Nosso corpo moviola reúne no tempo o corpo também cambiante do trabalho. Água flui. Jardins Submersos acontece na experiência.  

Anotações para o debate no Palácio Gustavo Capanema por ocasião da exposição "Jardins Submersos". Rio de Janeiro, setembro 2014.