Paulo Venâncio Filho
Uma Imersão no Espaço e na História
I
Restaurar, imaginativa e sensorialmente, um momento inicial do encontro entre natureza e arquitetura nas condições modernas brasileiras, em particular da cidade do Rio de Janeiro e de seu espaço arquitetônico, é, creio, o propósito deste projeto. Sua localização é decisiva, pois foi idealizado para um lugar específico, único e insubstituível: o Palácio Capanema, antigo Ministério da Educação e Cultura - o prédio do MEC, como ficou conhecido -, construído a partir do traço inicial de Le Corbusier e desenvolvido por uma equipe de arquitetos coordenada por Lucio Costa. Assim sendo, não se trata de um lugar qualquer, mas de um marco inaugural; a presença viva na cidade da gênese da arquitetura moderna brasileira. Jardins submersos de Fernanda Junqueira, não é, portanto, apenas um trabalho in situ, abstrato e descontextualizado: está imerso em um conjunto de circunstâncias de grande densidade histórica; simultânea submersão no espaço e na história. Juntos, no mesmo edifício do MEC, a transparência do espaço do Mezanino, com sua fachada envidraçada de alto a baixo - a luz natural invadindo por ambos os lados -, e a presença, acima, do jardim de Burle Marx formam os elementos fundamentais que interagiram na imaginação formativa do trabalho: o terraço-jardim corbusiano é projetado um andar abaixo, e o paisagismo de Burle Marx, reconfigurado como um jardim líquido. O prédio icônico, inaugural da arquitetura moderna brasileira, é invadido pela água; o elemento físico que manifesta a transparência entre o espaço interno e externo assim como as formas orgânicas do jardim que refletem a geografia da cidade à beira-mar estabelecem a escala do ambiente. Quem sabe, também haja aí uma inspiração vinda de um antecedente notável: Claude Monet e seu famoso jardim em Giverny, construção paisagística dirigida à suscitação da pintura que, aqui, propõe um ambiente sensorial de reminiscências impressionistas de outra ordem e por outros meios - projeções de imagens dos jardins do sítio de Burle Marx - e no formato contemporâneo da instalação. A água é o grande protagonista desse cenário – cenário movente - contido dentro das sinuosas formas orgânicas tão características do paisagismo de Burle Marx; a água substitui a soberania da vegetação. Luz e água, os elementos que dominam o ambiente e que sugerem um modo de imersão no espaço, certa suspensão do peso corpóreo – o próprio Mezanino é um espaço suspenso sobre os pilotis do MEC -, e uma possível flutuação do espectador no espaço, no espaço que flutua junto com o espectador. As projeções das imagens sobre a água transportam os movimentos naturais dos jardins de Guaratiba – vento e chuva -; o ambiente movimenta-se junto ao movimento do espectador, e o espaço todo se manifesta cinematicamente. A cor dominante não poderia ser outra senão o azul. Um azul incorpóreo, em diluição e impregnação constante. De fato, é a reconstrução da presença natural e arquitetônica através de seus elementos mais frágeis, frequentemente menos observáveis, com os quais, aqui, nos defrontamos numa imersão imediata. Essa imersão no ambiente, nesse espaço resguardado do caos urbano, nos faz refletir e dar conta de frequências sensíveis mais sutis, mais demoradas e expansivas, de uma utópica e gratuita convivência com as coisas. Tudo que está aqui se pode encontrar em toda parte, mas só aqui adquire certos traços únicos de uma experiência – sensorial e histórica – brasileira: o ruído da chuva, o movimento dos matisseanos peixes vermelhos, a vegetação suavemente agitada pelo vento sobre a superfície da água, o caminhar pelo espaço moderno formam um complexo de referências que invocam um modo de estar formado em nossas próprias circunstâncias, ao qual o trabalho retroage para nos rememorar: nossa tão rápida e luminosa infância moderna na qual se inspira. Dessa maneira, a ingenuidade sofisticada dessa instalação, esse franco descortinar dos elementos vivos do espaço voltam-nos a uma lição da infância esclarecida.
II
Imediatamente ao entrar, encontramo-nos sob o domínio do azul, ou melhor, das tonalidades do azul ou, ainda, da dissolução do azul na água; uma reação química entre cor e transparência que se estende ao longo de todo o ambiente. O gênero contemporâneo da instalação em geral ignora ou está quase sempre distante da natureza; raramente uma instalação procura reproduzir ou simular uma natureza como esta. Aqui, o elemento dominante, a água, impõe a remissão imediata à natureza. E, daí, ao modo mais contemplativo, como usualmente a observamos. Diante dela, somos observadores de algo não criado por nós, e que eventualmente tentamos reproduzir, dominar e quase sempre destruir. Esses espelhos de água azul refletem a arquitetura do Mezanino, formando um imenso tromp l’oeil espacial, uma quase pintura ambiental. Toda essa combinatória ocorre sensorialmente em todo o ambiente – o termo “instalação” parece aqui um tanto impróprio. Como se fossem espelhos azulados, refletem a arquitetura que ora parece submersa, ora refletida no azul do ambiente. Os espelhos-d’água artificiais expandem a transparência total do espaço luminoso, correspondência entre a transparência do vidro e a da água. Estamos em um ambiente que convida a uma permanência meditativa, silenciosa; somos capturados pelo comportamento da água. O suave rumor de chuva – único ruído no ambiente - revela e acentua a amplidão do espaço: o silêncio é o maior ampliador de espaços. A ocupação integral e a justaposição e concordância perfeita entre espaço e ambiente - a aceitação integral de um pelo outro -, como se o ambiente emergisse da arquitetura e nos convidasse ao vagar, simplesmente, como num jardim. No ambiente se reinstala a quietude contemplativa do jardim, e o espaço adquire uma qualidade pictórica expandida, de absoluta intensidade cromática. As poucas e essenciais imagens projetadas registram situações nas quais os efeitos da água se revelam diferentemente; o cair da chuva, a flutuação das plantas aquáticas, o movimento submerso dos peixes; o efeito é o de presenciar uma circularidade, um movimento que se renova constantemente - a captura da frequência mais frágil e quase imperceptível da natureza –, realizando, naquele mesmo espaço, o que a arquitetura uma vez buscou alcançar.
Texto crítico no catálogo da exposição JARDINS SUBMERSOS, Prêmio Projéteis de Arte Contemporânea, Galeria Mezanino - Funarte, Rio de Janeiro, setembro, 2014.
An Immersion in Space and History
I
To restore, imaginatively and sensorially, an early moment of the meeting between nature and architecture in the modern Brazilian conditions, particularly in the city of Rio de Janeiro and its architectural space, is, I believe, the purpose of this project. Its location is crucial, as it was conceived for a specific, unique and irreplaceable site: the Palácio Capanema [Capanema Palace], former Ministry of Education and Culture - the MEC building, as it became known -, built originally from Le Corbusier’s initial design and developed by a team of architects coordinated by Lucio Costa. It is not, therefore, about any place, but an inaugural landmark: the living presence in the city of the genesis of modern Brazilian architecture. Hence, Jardins Submersos [Underwater Gardens] by Fernanda Junqueria, is not simply an in situ work, abstract and decontextualised, but is, otherwise, immersed in a set of circumstances of great historical density; simultaneous submersion in space and history. Together, in the same MEC building, the transparency of the Mezzanine’s space, with its windowpanes from top to bottom – the natural light invading on both sides -, and the presence above Burle Marx’s garden form the fundamental elements that interact in the work’s formative imagination: the Corbusian garden-terrace is projected one floor below, and Burle Marx’s landscaping, reconfigured as a liquid garden. The iconic building, which inaugurates modern Brazilian architecture, is invaded by water; the physical element that manifests the transparency between inside and outside, as well as the garden’s organic shapes which reflect the geography of the seaside city establish the scale of the environment. Perhaps here also an inspiration derived from a remarkable ancestor: Claude Monet and his famous garden in Giverny, landscaping construction aimed towards stimulating painting that here proposes a sensorial environment of impressionist reminiscences of another order and by other means - projections of images in the gardens of Burle Marx’s Guaratiba nursery -, and in the installation’s contemporary shape. Water is the main protagonist in this scenario – a moving scenario –, contained within the sinuous organic forms so typical of Burle Marx’s landscaping; water replaces vegetation’s sovereignty. Light and water, elements which dominate the environment and that suggest a means of immersion into the space, a certain suspension of the body weight – the Mezzanine itself is a suspended site over MEC’s pillars -, a possible fluctuation of the viewer in the space, in the space that fluctuates together with the viewer. The projections of the images over the water convey the natural movements of the Guaratiba gardens – wind and rain -, the environment moves with the viewer’s movement, and the entire space manifests itself cinematically. The dominant colour could not be other than blue. An incorporeal blue, in constant dilution and impregnation. It is, in truth, the reconstruction of the natural and architectural presence by way of its most fragile elements, often less evident, which we here face in an immediate immersion. This immersion into the environment, in this space sheltered from the urban chaos, makes us think and become aware of more subtle sensitive frequencies, slower and expansive, that coexist with things in a free and utopian way. Everything that is here can be found anywhere, although only here it acquires certain unique features of a Brazilian experience – sensorially and historically. The sound of the rain, the movement of the Matissean red fish, the vegetation gently ruffled by the wind over the water’s surface, walking by the modern space form a complex of references that invoke a way of being forged in our very circumstances to where the work retroacts so we may recall: our brief and luminous modern infancy in which it is inspired. Thus, the sophisticated naivety of this installation, this frank unveiling of the space’s living elements, takes us back to a lesson from childhood now clarified.
II
Immediately upon entering, we find ourselves under the blue rule, or rather, of the shades of blue or, yet, of the fading away of blue in water; a chemical reaction between colour and transparency that extends throughout the entire environment. The installation’s contemporary genre in general ignores or is frequently distant from nature; rarely an installation attempts to reproduce or mimic nature such as this one. Here the dominant element, water, imposes an immediate allusion to nature. And, thus, to the most contemplative manner, as we habitually observe it. When facing it, we are observers of something not created by us, and that eventually we try to reproduce, dominate and often destroy. These mirrors of blue water reflect the Mezzanine’s architecture, forming a huge spatial tromp l’oeil, a quasi-environmental painting. This combination occurs sensorially all over the environment – the term “installation” seems here rather inappropriate. As if they were bluish mirrors, they reflect the architecture that sometimes appears underwater, at others mirrored in the blue of the environment. The artificial reflecting pools expand the total transparency of the luminous space, correspondence between the transparency of the glass and the water. We are in an environment that welcomes a silent and meditative stay; we are captured by the water’s behaviour. The rain’s gentle murmur – only sound in the environment - reveals and enhances the space’s sweep: silence is the greatest magnifier of spaces. The whole occupation and the juxtaposition and perfect harmony between space and environment – the total acceptance of one by the other, as if environment emerged from architecture and invited us to simply wander, as in a garden. In the environment, the garden’s contemplative quietude is restored, and the space gains an expanded pictorial quality, of an absolute chromatic intensity. Few and essential projected images register situations where the effects of the water surface differently; the falling rain, the floating of the water plants, the underwater movement of fishes; the effect is that of witnessing a circularity, a movement that constantly renews itself - the seizing of the most fragile and hardly noticeable frequency of nature -, performing in that same space what architecture once sought to attain.
Text for "Underwater Gardens" Solo Exhibition's catalogue, Award/Prêmio Projéteis de Arte Contemporânea, Funarte - Palácio Gustavo Capanema, Rio de Janeiro, RJ, 2014.
English translation: Ann Perpétuo