Quase pintura, mais que desenhos

Hoje, na arte, falar de corpo, para usar o jargão jornalístico, é como um “gancho”. Só que, na maioria dos casos, falar-se-ia mais clara e apropriadamente de figura. Mas, enfim, o corpo está na moda, ao contrário da figura. Por isso, com frequência, o “gancho” do corpo não agarra em nada. Aí, essa turma deslumbrada com o corpo como criança de colo ao se reconhecer no espelho, mesmo com pedantismo terminológico e macetes de sintaxe, não consegue esconder a anemia do pensamento. Esses trabalhos de Fernanda Junqueira são uma das raras manifestações da arte brasileira mais recente que, para seu pleno entendimento, exigem uma reflexão sobre a presença do corpo e da figura.

A presença do corpo se dá no interior da tradição moderna que emancipa o gesto expressivo e o eleva a uma das condições da forma. Em Fernanda, ela é generosa sem ser excessiva, como se encontrasse, na sua elegância, a justa medida. Esse caráter quase discreto de seus gestos, quando comparado a certas aberrações contemporâneas, se deve, em parte, a uma adequação de escalas: a do próprio corpo e a da superfície que vai sofrer a intervenção. Essa espécie de ergonometria embutida no trabalho poderia até domestica-lo, não fosse ela, também, impulsionada pela ideia de contraste com o mundo que a cerca, um ambiente urbano onde o excesso é a norma. Contrariando esse meio, os gestos têm, em si, mais natureza que todas as anacrônicas representações de árvores, bosques e florestas que povoam as cabeças e telas ecológicas. É como se Fernanda tivesse intimidade com a poética de Virgílio e a reconstruísse no seu tempo.

A esse gesto, vêm de encontro as imagens sugeridas pelo seu percurso evocando figuras. Estas tem presença diferente daquele corpo que atua na produção, são como fantasmas negros que insinuam sua materialização sem chegarem à vulgaridade de completar sua aparição; são como sobras do humano no reino da matéria.

Fernanda é consciente da herança de Giacometti, mas desta se diferencia pela ausência da angústia. A desmaterialização da figura não traz o sofrimento do ser em confronto com a existência. Aqui , ela é exercício da vontade de não se realizar inteiramente, porque esta completude, uma vez adquirida, a destruiria lançando-a na confusão dos entes anônimos. É um paradoxo: preservam a totalidade porque são fragmentos de seres que não se entregam.

A potencia desses trabalhos desafia seu enquadramento, são quase pintura, mais que desenhos.

Texto crítico para o catálogo da exposição individual Fernanda Junqueira, na Galeria Macunaíma, Funarte, Rio de Janeiro e, no Centro Cultural São Paulo, SP, Ambas em 1996.

Almost painting, more than drawings

In Art today, to talk about the body is like using a “hook”, to employ newspaper jargon. Except that, in the majority of cases, it would be clearer and more appropriate to talk of the figure. But anyway, the body is in fashion, not the figure. For this reason, quite frequently the “hook” of the body does not catch on anything. And then the crowd that is fascinated like a babe in arms recognizing its image on a mirror, cannot disguise, behind no matter how pedantic the terms or the syntatic tricks used, the anemic thinking. These works by Fernanda Junqueira are one of the rare manifestations in recent Brazilian art which, for full comprehension, demand a reflection on the presence of the body and of the figure.
The presence of the body occurs within the modern tradition that emancipates the expressive gesture and raises it to one of the conditions of the form. In Fernanda’s work, it is generous without being excessive, as if it had found, in its elegance, the just measure. This almost discrete characteristic feature of her gesture, as compared with certain contemporaneous aberrations, is in part due to an adequacy of proportions: those of her own body to the surface which will suffer the intervention. This sort of ergonometrics built in the work could lead to its tameness were it not for the fact that the artist is herself pushed by the idea of offering a contrast against the world that surrounds her, an urban environment where excessiveness is the rule. In opposition to this milieu the gestures carry in themselves more of nature than all anachronistic representations of trees, woods and forests that swamp heads and ecological canvases. It is as Fernanda were intimate with Virgil’s poetry and reconstructed it in her own time.
To the encounter of this gesture come the images suggested by its trailings evocating figures. These mark their presence differently from that body which acts in their production; they are dark phantoms that suggest their materialization but which do not quite make a vulgar aparition: they are like remains of the human in the reign of matter.
Fernanda is concious of Giacometti’s legacy, but differs from same for the absence of anguish. The demateralization of the figure does not bring with it the suffering of the being confronted with existence. Here, dematerialization is the resolve not to reach its completion because once attained this completeness would destroy the figure and discard it into the universe of nameless beings. It is a paradox: they preserve the totality because they are fragments of beings which do not surrender themselves.
 The strength of these works are a challenge to their classification, they are almost painting, more than drawings.

Text for "Fernanda Junqueira" Solo Exhibition's catalogue, Galeria Macunaíma, Funarte, Rio de Janeiro, RJ and Centro Cultural São Paulo, São Paulo, SP, 1996.

English translation: Deny Fonseca

Paulo Sergio Duarte